Meu corpo está completamente dormindo, desligado, apagado. Jogado ao sono pesado de sempre. Ainda assim, em algum lugar, a consciência consegue ouvir os gemidos de dor que ela dá, logo ao meu lado na cama.
7 meses e meio de gestação nos levam a isso.
O hospital fica a exatamente duas quadras do apartamento alugado na Eixample. Apenas duas. Mas, tanto ela, (que sem saber entrava) em trabalho de parto, quanto eu, no campo aberto de minha consciência, envolto pela escuridão de meu cansaço diário, tínhamos uma única e clara certeza: Ainda era cedo!
Passa-se algum tempo até a constância da situação inspirar o mínimo de preocupação em meu sono vazio. De dentro da casca que era meu corpo, formo planejamentos de esperar o sol nascer, levar meu filho ao colégio, e depois arrastá-la, à força para o hospital Sant Pau –– que, como já disse aqui, ficava ao lado de casa.
É válido lembrar, que a grande maioria dos planos (tanto meus, quanto de qualquer outro mortal) tem a mania de se deixar arrastar pelas fortes correntezas do acaso.
A aurora se levanta, enquanto minha mulher se senta ao meu lado, para aliviar o desconforto. A consciência desperta o corpo, pouco a pouco, com uma ansiedade crescente, centrada em seus gemidos de dor –– cada vez mais fortes, também. Um puxão forte no meu braço, para me despertar de vez, me faz entender que aquela certeza comum, nossa, havia vindo abaixo:
–– Ela está nascendo!
Pulo da cama e me visto em meio segundo. Alerta. Em seguida, a ajudo a levantar e a se vestir. Sharlene, minha esposa, tem dificuldade em caminhar. Pego a bolsa –– tem a bolsa por arrumar ainda! Ela pede para ir ao banheiro. Tempos atrás, os médicos haviam dito que após o rompimento da bolsa, a criança pode levar de 6 a 12 horas para nascer.
–– A bolsa se rompeu! –– Ela grita, do banheiro, enquanto eu tento arrumar a outra bolsa.
Nessa confusão de bolsa pra lá, bolsa pra cá. Minha mulher decide tomar um banho, antes de ir definitivamente para o hospital –– Fiando-se, obviamente, na informação que nos passaram, os médicos formados daquele país de primeiro mundo.
Volto ao nosso quarto para pegar uma toalha, e minha irmã, recém acordada, que dormia no quarto ao lado, abre a porta e me pergunta o que está acontecendo.
–– A Rafa está nascendo –– comento, com naturalidade –– fica com o Ramom pra mim?
Minha irmã concorda com um aceno, entre bocejos.
Então, a segunda certeza vem abaixo, quando escuto Neni (minha esposa), me chamar aos gritos, novamente.
–– Ela tah nascendo –– ela me diz, a cara totalmente transtornada de desespero.
Olho para chuveiro e vejo minha mulher, de pé, segurando parte da cabeça da nenê com as mãos.
A cabeça de um homem entra em parafuso nesses momentos. Meu impulso mais imediato foi o de pegar o telefone e tentar ligar para uma ambulância, acho, mesmo sem a menor idéia de que numero ligar. Ramom, meu filho, acostumado a acordar cedo para olhar tevê, antes de ir pra aula, já estava sentado no sofá da sala, me olhando. Minha irmã, que havia ouvido os gritos de minha mulher, e me seguido até o banheiro, tentava auxiliar-la ali mesmo, sem muita opção. Indignado, com os gritos àquela hora da manhã, meu irmão, vem me perguntar enfezado o que estava acontecendo.
–– A Rafaela tah nascendo! –– respondo nervoso. –– qual é o numero da ambulância?
A resposta é uma cara de espanto por parte dele.
–– 010, disca 010.
Em meio a tudo isso, minha irmã passa correndo, chamando minha mulher, que vem passando nua, em direção ao quarto.
–– Rodrigo (meu irmão), me ajuda –– ela pede, quase que ordenando.
Eu disco o numero, mas cai num serviço da prefeitura. O simples som da voz da atendente, em catalão, me irrita e me impacienta.
–– Não é esse, –– respondo irritado.
–– Deixa que eu tento –– meu irmão pede, constrangido pela situação.
Eu acompanhava da porta do quarto, as duas improvisarem uma maca, um leito pra chegada do neném. A Neni, nua, deitada, com as pernas em posição de parto, em cima da nossa cama, e minha irmã aos pés, dizendo para ela fazer força. Angustiado, chocado, impotente, viro a cabeça para trás, para perceber meu filho sentado no sofá, desperto e excitado para a chegada da irmãzinha.
–– Minha maninha tah nascendo, pai!!!! –– ele me dizia, com os olhos bem abertos, brilhantes.
Ao meu lado, a telefonista demorava em direcionar meu irmão ao ramal da ambulância.
O desespero, a impaciência em mim, chegaram ao seu auge, quando eu vi, pela primeira vez o rosto dela. O tempo parou. Ela tinha quase nascido por completo, ainda estava suja de placenta, e, em seu esforço por nascer, ela me olhou, com seus olhos que na época eram azuis como os da mãe.
Por mais que, tempos depois, contando essa historia a conhecidos, meus irmãos juravam de pés juntos que eu havia estava chorando, nesse momento eu tinha a expressão totalmente agoniada de preocupação e medo, mas não chorava. A simples visão do rosto da Rafaela, me impulsionou contra a calamidade de qualquer perigo eminente, e foi então que eu fiz o que qualquer pai faria nesse momento.
Mediante a falta de praticidade da sociedade catalã frente a urgências telefônicas, saí eu, correndo, descendo cinco andares de escadas, subindo uma lomba de duas quadras até o hospital, atrás de uma ambulância, na atitude mais pratica de toda minha vida.
Quando cheguei em casa, a Rafa já tinha nascido e me olhava do colo de minha irmã.
Todos estavam calmos e bem. Meu filho vibrava por ter assistido ao parto da maninha.
Faltava apenas cortar o cordão umbilical. E essa foi a última, que a sociedade médica local me aprontou: os paramédicos que eu havia trazido aos gritos, dizendo que minha mulher estava dando à luz em casa, NÃO LEVAVAM TESOURA ESTERILIZADA Moral da história: tiveram que chamar, pelo rádio, outra equipe de paramédicos, só para poderem cortar o cordão e levarem as duas para o hospital.
Tudo terminou bem. Neni me contou, ainda no hospital aquele dia, que mal eu havia batido a porta, e a Rafaela havia nascido. Sozinha.
Meus irmãos foram aos seus respectivos trabalhos. Minha esposa e filha foram levadas ao hospital. E eu, fui levar meu filho ao colégio.
Naquele ano, meses antes, o Oasis havia lançado seu último álbum, na qual havia uma musica I’m Outta time (estou sem tempo). Nesse dia, em meio ao desespero, antes de entender que tudo acabaria bem, correndo lomba a cima, rezando a deus e a tudo que mais me fosse sagrado para que uma força divina olhasse para baixo, e cuidasse de minha mulher e de minha filha, duas coisas me vieram à cabeça:
Uma, a visão do rosto de Rafaela, a outra, o refrão de dita musica que dizia: “(...)Em meu coração você crescerá, e lá é o seu lugar!”